Reforma Psiquiátrica: um passeio pelas experiência de Basaglia na Itália

Franco Basaglia
Olá caros leitores! A nossa jornada pelos movimentos da Reforma Psiquiátrica continua a todo vapor. Hoje abordaremos sobre a experiência da Psiquiatria Democrática que ocorreu no começo da década de 1960 na Itália, na cidade de Gorizia. Este movimento foi liderado por Franco Basaglia que, assim como, a Antipsiquiatria, considerava o termo “reforma” inadequado, pois a grande questão estava no modelo científico psiquiátrico estabelecido, que deveria ser repensado.
O autor, Paulo Amarante, antes de se aprofundar no movimento da Psiquiatria Democrática faz uma retomada histórica nas definições de loucura e na história da psiquiatria. As concepções de loucura, como já apresentado anteriormente no post sobre o livro do Foucault, foi construída e definida pela justiça e pela medicina atribuindo-a uma identidade de marginalidade e de doença. Os indivíduos considerados loucos seriam removidos da sociedade e encarcerados em instituições e medicalizando-os diminuindo os riscos e a desordem social. O louco, portanto, torna-se invisível socialmente e visível para a intervenção profissional, ou seja, ao mesmo tempo em que é excluído socialmente ele é incluído dentro das instituições psiquiátricas. Todo esse processo coloca a doença mental como objeto da medicina (i.é., o diagnóstico, a medicalização e as práticas de intervenções). 
De acordo com autor, Basaglia (1979:57) resume bem esse processo ao dizer que a “psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses e se preocupou com a doença” (Basaglia, 1979:57 apud Amarante, 1998, p. 29). A psiquiatria, portanto, limitava-se a uma leitura médica da doença sem levar em conta a subjetividade ou o histórico-social do indivíduo, isto é, como a existência da doença ou do sofrimento afetavam o sujeito. Esses princípios reforçavam o ideal do louco como marginalizado, segregado e excluído do meio social. 
Segundo Barros (1994:53 apud Amarante, 1998), não bastaria um movimento que colocasse a doença “entre parênteses”, seria necessário uma mudança na concepção reducionista da loucura em doença mental. Desse modo, surge a tradição basagliana que vai trazer um novo olhar para psiquiatria, pois passará analisar a realidade concreta (i.é., o contexto histórico, cultural, político e econômico) em que este indivíduo está inserido e como esse meio o afeta ultrapassando a visão médica. 
Franco Basaglia em um hospital de Gorizia, Itália,
De acordo com Amarante (2013), no início Basaglia se orientou pelo modelo das Comunidades Terapêuticas e da Psicoterapia Institucional, ele havia entrado em contato com ambas experiências e com seus protagonistas, e, assim, planejou executar de forma semelhante tratamentos mais efetivos e a reabilitação de internos no próprio hospital de Gorizia. Basaglia compreendia tal estratégia como provisória, como uma etapa para firmar o desmonte da estrutura manicomial tradicional. Entretanto, Basaglia constatou com o passar do tempo que apenas uma reforma na estrutura administrativa dos hospitais e processos de humanização dos tratamentos não seriam suficientes. Assim, houve o fechamentos dos hospitais em Gorizia.
Outra experiência relevante foi realizada no hospital de Trieste no início da década de 1970. Segundo o autor Paulo Amarante (2013), Basaglia e grupo de pessoas que também atuaram em Gorizia, deram início ao desmonte do modelo psiquiátrico manicomial, com a construção de novos espaços para o atendimento por toda extensão da cidade e, também, a organização de cooperativas de trabalho visando promover ocupações (i.e., produções artísticas ou de prestação de serviços) para os ex-pacientes dos hospitais. Foram construídos Centros de Saúde Mental (CSM) como serviços substitutivos. Os CSM eram distribuídos regionalmente com objetivo de cuidado com a saúde mental da população daquele território. Ao territorializar sua atuação, os CSM também promoveram uma reconstrução de um lugar social para as pessoas em sofrimento mental, altera a ideia de risco, erro e incapacidade. Essas estratégias visavam a possibilidade de inclusão social desses indivíduos, e podemos perceber em seu delineamento a influência do modelo de saúde comunitária dos Estados Unidos e da Psiquiatria de Setor na França.
Foi a partir de seu contato com obras foucaultianas e goffmanianas que Basaglia começou a elaborar uma prática institucional nova e que tivesse como objetivo a superação do modelo científico psiquiátrico tradicional, o qual não envolve apenas a estrutura física e administrativa dos manicômios, mas toda a produção e reprodução de saberes e práticas que alicerçam a segregação e patologização da experiência da loucura (Amarante, 2013).
Franco Rotelli
De acordo com Amarante (2013), Franco Rotelli foi o grande protagonista após a morte de Basaglia em 1980. Para ele, a Psiquiatria Democrática teve grande sucesso em romper as experiências anteriores ao promover a desospitalização. Para Rotelli, a psiquiatria ao adotar a doença como objeto fictício de estudo, ignorava completamente a complexidade dos sujeitos inseridos em uma realidade concreta. A construção da psiquiatria tradicional, desde seus aportes científicos e administrativos, pautou-se nessa divisão entre doença e sujeito e em um modelo assistencialista. A atuação de Rotelli visou a desconstrução desse conjunto de aportes e passou a considerar os sujeitos inseridos em um processo social complexo.
As experiências lideradas por Basaglia foi tão importante que tornou-se um movimento político, tendo início em 1973. Esse movimento culminou na instituição, em 1978, da Lei 180 ou Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana (popularmente conhecida como Lei Basaglia) inspirada nas ideias de Basaglia. Desse modo, é possível concluir que o movimento da Psiquiatria Democrática, inspirada na tradição basagliana, foi de suma importância para a Reforma Psiquiátrica, pois foi possível romper com a visão reducionista da medicina e passou a ver o sujeito em sua integralidade, isto é, um indivíduo biopsicossocial, além de propor práticas que auxiliaram no processo de desinstitucionalização e na reformulação do modelo da psiquiatria. Este movimento influenciou outros movimentos, como a Reforma Psiquiátrica Brasileira, a qual abordaremos na semana que vem!

Curiosidade: 

A partir da experiência ocorrida no hospital de Gorizia, Basaglia coordenou a publicação do livro “A instituição Negada”. Ele aborda toda discussão sobre estratégias e princípios do movimento de desestruturação dos manicômios

Indicações de artigos:

Junqueira, A. M. G.; Carniel, I. C. Olhares sobre a loucura: os grupos na experiência de Gorizia. Rev SPAGESP [Internet]. 2012 [cited 2016 Jul 07]; 13 (2): 12-22.

Referência:
Amarante, P. (1998). Loucos Pela Vida: A Trajetória de Reforma Psiquiátrica no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz.
Amarante, P. (2013). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Comentários

  1. Muito bom o texto, está bem sintetizado e é bem esclarecedor. Linguagem acessível até para quem se inicia no assunto. Parabéns!

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  2. Olá, meninas, adoramos o texto de vocês, principalmente por estar objetivo e claro. Gostamos mais ainda do fato de vocês trazerem uma curiosidade e uma indicação de artigos para quem, após a leitura, tiver interesse de se aprofundar no assunto abordado. Parabéns, vocês arrasam v( ̄∇ ̄)

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